Quando o acesso muda a história: jovens encontram pertencimento no IFS após o Partiu IF
Experiências de estudantes revelam o impacto humano de um programa criado para aproximar a rede pública da educação técnica federal
No auditório iluminado pelo painel digital onde seu nome aparecia projetado, Raissa Gabrielly ajustou o microfone com certa hesitação, observando a plateia que aguardava seu relato. Era a primeira vez que subia a um palco para falar sobre a própria experiência no Partiu IF, programa que frequentou durante meses e que, segundo ela, abriu uma porta que antes sequer imaginava existir. Recordou o momento em que caminhou pelo campus sob sol forte, numa visita guiada que fazia parte das atividades do curso, quando então começou a perceber que aquele espaço, antes totalmente desconhecido, poderia vir a ser parte do seu cotidiano. As palavras que pronunciou, lembrando essa descoberta, fizeram sentido para muitos dos que a ouviam: estudar no Instituto Federal de Sergipe (IFS) não tinha sido um sonho construído desde cedo, mas uma possibilidade que apareceu no horizonte apenas quando o programa a aproximou da instituição. Neste ano, o Partiu IF reuniu 377 estudantes da rede pública no IFS, e 188 deles foram selecionados por sorteio para ingressar nos cursos técnicos integrados em 2026 — dado que marca a dimensão do programa que atravessa as histórias narradas pelas jovens.
No centro dessas vivências está o Partiu IF, programa nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades voltado para estudantes do 9º ano da rede pública e ofertado em todos os campi do IFS. A coordenadora institucional, Cyndi Moura Guimarães, ressalta que seu papel pedagógico não se limita à ideia clássica de um curso preparatório. Em suas palavras, trata-se de uma formação que busca recompor aprendizagens, fortalecer competências e oferecer condições reais de permanência na Rede Federal. Ela explica que muitos dos quase 400 jovens atendidos chegam ao programa carregando dúvidas sobre pertencer ou não a esse espaço. “O público-alvo tem muita dificuldade de acesso ao IFS, por desconhecimento, dificuldades sociais diversas ou por acreditar que não é um lugar destinado para eles”, afirmou. Ao considerar que o processo seletivo atual ocorre por sorteio, Cyndi observa que o impacto do Partiu IF precisa ser entendido pela lente do acesso e da continuidade, e não por métricas relacionadas ao mérito acadêmico. Assim, quando fala dos 188 estudantes que ingressarão no IFS em 2025, ela descreve um movimento de aproximação e permanência, e não de competição.
Um caminho que se abre aos poucos
A rotina de Raissa no programa foi marcada pelos deslocamentos, pelas aulas e pelos passeios que apresentavam o ambiente institucional, oferecendo um contato direto com espaços, laboratórios e pessoas. Ela relatou que, na verdade, não havia pensado em estudar no IFS antes do Partiu IF — não por falta de vontade, mas porque sequer imaginava essa possibilidade. Quando conseguiu entrar no programa, definiu aquele momento como um início inesperado. Durante os encontros, observava os colegas, os monitores e os professores conduzindo atividades que, segundo ela, eram determinantes para formar vínculos. O desafio maior foi lidar com o comportamento coletivo em algumas turmas, mas, como mencionou, a equipe se esforçava para garantir que a aprendizagem acontecesse apesar dessas diferenças. A primeira vez no campus ficou guardada pela sensação de acolhimento e tranquilidade; o último dia do programa, por sua vez, trouxe o sentimento de despedida que antecede uma nova etapa.
Alicia Fernanda, por sua vez, não estava diante do público no dia em que Raissa contou a sua experiência, mas também vivia a transição entre um ensino fundamental concluído e a perspectiva de ingressar no curso técnico escolhido. Sentada à mesa da sala da própria casa, lembrou que, antes de começar a frequentar o Partiu IF, enxergava o Instituto Federal como um ambiente de esforço contínuo e rotina exaustiva. Disse que acreditava ser difícil conciliar tempos, ritmos e demandas distintas, até perceber, ao longo do programa, que a instituição era mais plural do que imaginava. Quando conheceu o curso de Serviços Jurídicos, contou ter entendido que gostaria de voltar ali todos os dias, atravessando a fronteira que antes existia apenas na imaginação. “No dia da Semext só consegui pensar que eu era uma pessoa sortuda por ter sido sorteada no meio de tantas pessoas”, lembrou. A sorte, no entanto, não era a chave da história — a própria trajetória apontava para outro tipo de transformação.
Alicia também descreveu uma rotina intensa. Disse que o que mais a marcou foram os horários apertados, nos quais saía de uma escola para chegar à outra, acumulando responsabilidades e expectativas. No entanto, não houve momento em que pensasse em desistir — mesmo quando a pressão de conciliar ambientes distintos a deixava exausta. As atividades complementares, como a visita ao cenário de peixes e tartarugas, ofereceram experiências que iam além das salas de aula e ampliaram sua percepção sobre o próprio aprendizado. Ao longo dos meses, percebeu que a convivência diária com colegas que partilhavam trajetórias semelhantes criava um espaço de identificação. No último dia, disse ter sentido o peso da despedida: a rotina compartilhada se encerrava, mas o caminho aberto pelo programa ainda estava por começar.
Acesso, permanência e políticas públicas
Ao explicar como o Partiu IF organiza sua formação, Cyndi detalha a carga horária de 320 horas e a divisão entre eixo básico — com foco em conteúdos de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências da Natureza — e eixo suplementar, destinado ao desenvolvimento do pensamento crítico por meio de oficinas, visitas e participação em eventos. Ela afirma que o principal desafio é recompor aprendizagens que foram fragilizadas por diferentes fatores, entre eles as repercussões da pandemia e as dificuldades sociais que atravessam a vida escolar dos estudantes. O perfil socioeducacional do grupo corresponde aos critérios da lei que orienta políticas de acesso e inclusão no ensino superior e técnico federal. São jovens majoritariamente de baixa renda, oriundos integralmente de escolas públicas, e autodeclarados pretos, pardos, indígenas, quilombolas ou pessoas com deficiência. Essa caracterização reforça, segundo a coordenadora, a centralidade do Partiu IF como política de equidade e não como mecanismo de seleção por desempenho.
Do ponto de vista nacional, a proporção de estudantes que enfrentam barreiras educacionais persiste como um desafio significativo. Segundo dados do IBGE, cerca de 40% dos jovens concluintes do ensino fundamental apresentam defasagens consideráveis em língua portuguesa e matemática, o que repercute diretamente na capacidade de acompanhar os conteúdos do ensino médio. Organismos internacionais, como a UNESCO, apontam ainda que políticas de recomposição de aprendizagens e fortalecimento de vínculos escolares são essenciais para reduzir desigualdades estruturais no acesso à educação técnica e profissional. Nesse contexto, o Partiu IF se posiciona como uma ponte: oferece experiências que aproximam os estudantes da instituição antes que os desafios se tornem maiores no início da formação técnica.
A próxima edição do programa já está garantida. Em 2026, o IFS continuará oferecendo as 400 vagas distribuídas entre todos os campi, e a mudança anunciada no processo seletivo — que voltará a ser prova — exigirá ajustes metodológicos. Simulados e atividades direcionadas serão incorporados para que os estudantes tenham contato com esse formato de avaliação. Cyndi observa que, apesar dos avanços, ainda é necessário ampliar o alcance do programa e fortalecer parcerias com municípios, especialmente no que diz respeito ao transporte para estudantes de regiões mais distantes. A ampliação, segundo ela, é um passo fundamental para que a política alcance seu potencial ideal.
As narrativas de Alicia e Raissa convergem para uma mesma percepção: o Partiu IF não funcionou apenas como curso preparatório, mas como um ponto de virada que transformou distância em possibilidade concreta. Nas palavras de Raissa, logo que conheceu o campus, estudar no IFS tornou-se uma meta. Alicia, por sua vez, viu no curso escolhido uma confirmação de que desejava viver aquele cotidiano. Ambas descrevem o programa como um espaço onde dúvidas e receios foram gradualmente substituídos por novas perspectivas. A sensação de despedida no último dia do curso, presente nos relatos das duas, revela mais do que a conclusão de uma etapa: marca o início de um ciclo em que o acesso à educação pública federal se torna parte da história que constroem.


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